quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Kaspar Hauser – alegoria, mito ou história real?




Kaspar Hauser, retrato a pastel por J.F.C  Kreul, em 1830.










Luiz Carlos Nogueira













Conta-se através de inumeráveis obras e artigos publicados, que por volta do ano de 1812, uma criança teria sido abandonada pelos pais e, quando por volta dos seus 15 anos, foi encontrada na praça  Unschlittplatz, em Nuremberg, Alemanha do século XIX, com um carta endereçada a um capitão daquela Cidade, dizendo que o menino chamava-se Kasper Hauser, e que o mesmo teria laços de parentesco com a família real de Baden. A carta resumia um pouco da história de Kasper, que trazia consigo um livreto de orações.

Um pouco da sua história estava contida naquela carta, mas ele contava que havia estado toda a sua vida até aquela data, vivendo numa masmorra escura, sem nenhum contato com outras pessoas, a não ser com um homem que o alimentava somente com pão e água, sem, no entanto, mostrar-se ao menino.

Assim, o caso Kaspar tronou-se rapidamente famoso, até porque falava-se que ele poderia ser um príncipe da familia real de Baden, e que possivelmente teria sido  sequestrado do seu berço.

Por ter sido isolado do convívio humano por toda a sua vida,  até quando apareceu naquela praça, Kaspar já com mais ou menos 15 anos de idade, não conseguia conversar ou expressar-se em algum idioma. Por conseguinte apareceram pessoas que lhe ensinaram as palavras, sendo que o mesmo foi-se desenvolvendo à medida do seu convívio social, passando a expressar-se pausadamente. Assim pôde-se verificar que ele apenas não podia se comunicar porque desconhecia o uso da palavra, mas tinha a mente sadia

Nesse ponto, parece ser uma forma alegórica de ensinar a importância das palavras, como forma de comunicação, que melhor possibilita a inclusão social do indivíduo. Também seria uma forma de explicitar que a privação do conhecimento de de conceitos e raciocínios, impedem ou dificultam as pessoas assim como Kapar, de diferenciar os sonhos da realidade, conforme ocorria durante o período em que ele passou preso na escuridão da masmorra. Aqui lembra-nos a Alegoria da Caverna exposta por Platão em seus Diálogos.

Outros fatores ocasionados pelos tempo em que o personagem esteve privado do convívio humano, talvez tenha sido uma forma dessa história remeter-nos à questão de um dos sete pecados capitais (a gula), pois segundo se conta, Kasper tinha aversão à alimentação com carne e de beber álcool, por ter estado submetido a viver apenas de pão e água .

Kaspar, por ter aprendido a falar, a ler, a conhecer a música e a se comportar em tão pouco tempo, tornou-se famoso na Europa, o que lhe teria rendido o título de “O Filho da Europa”. Por conta disso ele teria obtido um desenvolvimento do lado direito do cérebro, ou seja, o seu lado direito do cérebro teria ficado maior do que o direito, o que lhe teria possibilitado obter avanços no campo da música. Nesse particular, parece-me também que é uma forma alegória de incentivar ao aprendizado da arte da lógica, da gramática, da retórica, da dialética e da música, para o desenvolvimento do espírito humano.

Conta-se finalmente, que Kaspar Hauser teve tutores com os quais viveu até ser assassinado com uma facada no peito, em dezembro de 1833, nos jardins do palácio de Ansbach. Na história não ficaram esclarecidas as cirunstâncias, a autoria e as motivações do crime, não obstante tivesse havido uma promessa de recompensa de 10.000 Gulden (c. 180.000,00 Euros), oferecida pelo rei Luís I da Baviera  para quem pegasse o assassino. Neste particular fica demonstrado um dos sete pecados capitais que levam o homem à desgraça — a inveja, que “é o desejo exagerado por posses, status, habilidades e tudo que outra pessoa tem e consegue. É considerada pecado porque uma pessoa invejosa ignora suas próprias bênçãos e prioriza o status de outra pessoa no lugar do próprio crescimento espiritual. O invejoso ignora tudo com que foi abençoado e possui para cobiçar o que é do próximo”.


Para quem quiser conhecer um pouco mais da história de Kasper Hauser, recomendo o filme de Werner Herzog, "Jeder für sich und Gott gegen alle", ou seja, "Cada um por si e Deus contra todos"), de 1974, lançado em português com o título "O Enigma de Kaspar Hauser".

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

DEUS ESTÁ EM TUDO











Luiz Carlos Nogueira











Conta-se que numa floresta na Índia Antiga, vivia um sábio com seus discípulos, para os quais costumava ensinar sobre as questões complexas das religiões.

Certa vez disse aos seus discípulos que as escrituras sagradas ensinavam que Deus habita em tudo o que existe no universo, assim também estava tanto no homem quanto na cobra naja, como também habitava nos elefantes e mesmo nas pedras das montanhas ou nas que se encontravam soltas pelos caminhos.

Djwal, seu discípulo mais jovem, tomou tal ensinamento ao pé da letra e o guardou na memória, para se lembrar sempre; de sorte que um dia, quando voltava trazendo lenha que fora pegar, deparou-se pela frente, com um homem que vinha todo suado conduzindo um elefante endoidecido.

Como o homem não estava conseguindo conter o animal, vendo Djwal que não saia da estrada, gritou-lhe: Ei você! Saia da estrada para que o elefante possa passar, pois ele está furioso!!!

Djwal, em vez de sair do caminho, lembrou-se do ensinamento transmitido pelo seu mestre, e disse para consigo mesmo: Ora, se Deus está naquele animal, ele não poderá me causar nenhum mal. E assim o discípulo não saiu da estrada, fazendo com que o elefante lhe atacasse e o atirasse ao chão, com sérios ferimentos, onde ficou desmaiado.

Eis que dois trabalhadores que presenciaram a cena do imprudente discípulo, o acudiram e levaram até a floresta onde o sábio vivia. Depois de algum tempo, com o atendimento prestado pelo sábio, recuperando a consciência, Djwal contou-lhe o que  havia acontecido e porque não fugiu do elefante.


— Meu filho – disse-lhe o sábio, é bem verdade que Deus se encontra em todas as coisas, até mesmo naquele elefante furioso. Todavia, se Ele estava manifestado no elefante, também estava da mesma forma naquele homem que conduzia o animal. Então por que você não prestou atenção aos conselhos daquele homem cauteloso? Ele era a forma através da qual Deus estava se manifestando. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A LENDA DE NEFERHOTEP E A SEMELHANÇA COM A LENDA DE HIRAM ABIFF











Luiz Carlos Nogueira




Segundo os veículos noticiosos, por volta dos meados de 2005, foi encontrada por arqueólogos franceses, nas ruínas do antigo templo de Karnak, no Egito, uma estátua de tamanho natural, ou seja, de um metro e oitenta centímetros de altura, esculpida em pedra calcária, que seria do faraó Khasekhemre Neferhotep I, que teria reinado aproximadamente entre 1.696 a 1.686 a.C. 

Portanto, Neferhotep I foi rei entre a 13ª e 14ª dinastias do Egito. Ele era filho de um sacerdote do templo de Abido, o que deve ter contribuído para sua subida ao trono, já que não havia sangue real em sua família.

A estátua desse rei foi feita com um adorno em sua cabeça, que era denominada de nemes, tendo em suas mãos uma maçã. Atualmente há uma legenda informando (??) que Neferhotep I, foi o 22.º faraó da XIII dinastia (c. 1783 até após 1640 a.C.).

Pois bem, segundo algumas fontes, há uma narração em um papiro da época do reinado do faraó Seti II (faraó da XIX dinastia egípcia, que governou entre cerca de 1200 e 1194 a.C.), que havia naquela época, conflitos entre um grupo de construtores do Vale dos Artesãos no antigo Egito, quando Neferhotep era um dos dois capatazes  das construções da necrópole de Deir el Medina, sendo que Paneb, seu filho adotivo, cobiçava-lhe o cargo.

Neferhotep e sua esposa Uabkhet, não tiveram filhos, por isso, além de adotar Paneb, o fizeram casar com Uabet, parente muito próxima de Hay, que era um outro capataz, para que o adotado pudesse dar continuidade à sua linhagem.

Ora, Neferhotep era um destacado capataz descendente de uma respeitável linhagem de mestres construtores, muito conhecida pela sua especialidade, razão pela qual já prestavam serviços para diversas dinastias de faraós, no Vale dos Artesões. Aliás, ele, como a maioria dos construtores operativos em Deir el Medina, era muito hábil na construção de edificações sagradas, tais como templos e sepulcros.

A capatazia de Neferhotep, ele a herdou de seu pai Nebnefer (que também era um chefe construtor), por isso lhe era dado grande prestígio naquela região. Essa ocupação lhe rendia bons ganhos, além de proporcionar a posse de terras na quais era estabelecido com sua família. De tal sorte, aos capatazes competia escolher seus serventes (aprendizes), quase sempre originários da própria família, como irmãos e filhos.

Ocorreu que Paneb, o filho adotivo de Neferhotep, assim como o seu irmão (tio de Paneb) mais novo, Amennakhte, começaram a disputar a sucessão ao cargo de capataz e, por consequência, tudo o mais que competia a cargo, além do prestígio.

Num papiro existente no British Museum, segundo informações, está registrado um relato no qual Amennakhte teria imputado a Pane, várias transgressões quando litigavam pela sucessão de Neferhotep.

Conta-se que Paneb, não obstante tivesse sido um excelente capataz, além de mulherengo, costumava se embriagar e por isso tornava-se colérico e extremamente violento, por conseguinte, era de má índole, aliás, tinha, além disso e apesar de ser instruído, o vício de furtar e roubar, conforme o seu tio adotivo Amennakhte, o teria denunciado. Segundo esse seu tio, Paneb desviara mobílias utensílios da tumba real para utilizá-los em seu próprio sepulcro que estava construindo. Até o ferramental de propriedade real, Paneb carregava consigo. Até os empregados que ele contratava para cortar pedras para as obras da tumba do Rei Seti II, tinham que furtar todos os dias, algumas pedras para serem utilizadas na sua própria tumba. Paneb furtava até dos seus empregados.

Outro ponto negativo do caráter de Paneb, era o de extorquir de todas as formas os seus operários, forçando-os a fabricar sua mobília funerária e até outros objetos, como também de serem obrigados a alimentar o seu gado. Até os objetos de tecelagens, devia ser produzidos para ele, pelas esposas dos seus operários.

Foi nesse seu clima que Paneb, ambicionando o Cargo de Capataz, assim como teria acontecido com Hiram Abiff, quando os três celerados rufiões Jubelas, Jubelos e Jubelum, queriam arrancar-lhe os segredos do seu posto de Mestre Construtor, acabaram por assassiná-lo.

Conforme era estruturada a sociedade de operários do Vale dos Artesões, que trabalhavam no ofício de pedreiros, havia um Vizir com dois Capatazes que dirigiam, cada um, a sua equipe, exatamente como a Maçonaria opera com o Venerável Mestre, que a preside, e dois Vigilantes, que por suas vezes dirigem as suas Colunas.

Assim também eram os que trabalhavam na necrópole real da 13ª dinastia, denominados “Servidores no Grande Lugar”, que eram dirigidos por dois Capatazes, sendo um para cada equipe, como na Maçonaria deve haver 2 Vigilantes — um para cada coluna, sob a presidência do Venerável Mestre. Assim é que, os Capatazes eram também chamados de “Chefe da Equipe no Local da Verdade”

A direção dos operários do Vale dos Artesões, era atribuída aos 2 Capatazes indicados pelo Vizir (assim como na Maçonaria os Vigilantes são indicados pelo Venerável Mestre — uma para cada coluna), sendo um para cada equipe, evitando dessa forma as concentração de uma só pessoa no canteiro de obras.

Ora, assim como na Maçonaria em que a lenda diz que Hiram prestava culto numa espécie de sanctum, ou lugar destinado a JHVH[1], Neferhotep prestava seu culto ao seu deus, na "Câmara de MAAT". Como se pode ver ambos os mestres construtores (Neferhotep e Hiram) achavam-se sob as ordens dos seus reis, para executar suas construções e outras tarefas sagradas — o que motivou a inveja de alguns Companheiros de Ofício e por isso desejavam usurpar-lhes o lugar.

Na lenda de Hiram Abiff, o que os seus matadores queriam era obter a senha ou palavra de passe, que os autorizaria a ingressar na Câmara reservada ao Mestre Construtor e assim descobrir seu segredo da arte de construir. Ora, como se pode observar tudo não passa de um ensinamento mediante uma alegoria moral, pois é evidente que não seria possível a esses companheiros assassinos, ascenderem profissionalmente naquela época longínqua, meramente apropriando-se de uma senha (palavra de passe, palavra de mestre).

Ademais, esses celerados haveriam de saber que para se transporem para um grau mais elevado, exigir-se-ia ritualística apropriada, além do que, se eventualmente os três pudessem e ainda se fosse possível magicamente, tendo obtido tal senha antes de completarem seu período de aprendizado, obterem regalias indevidas, Hiram Abiff poderia ter-lhes dado uma palavra falsa — se existisse uma verdadeira.

De tal forma — fica claro que sobre a transmissão de uma senha ou palavra de passe, não pode ter naquele contexto histórico, qualquer fundamento ou lógica.

Por esse motivo, tanto Neferhotep quanto Hiram Abiff — Chefes Construtores  foram assassinados por três celerados Companheiros de Ofício, que alegoricamente representam a ignorância, o fanatismo e a ambição. Nesse contexto é que a Lenda de Hiram contém ensinamento para mostrar os três maus companheiros do Homem.

Eis então, que os Companheiros de Ofício, traidores, já eram conhecidos pelos seus maus comportamento, sendo que a Confraria, após envidar esmerados esforços, encontra-os e seus crimes são descobertos, acabando por serem executados por seu sacrilégio, assim como Paneb.

Como se vê, há coincidências entre a narrativa resumida do reinado de Nefrhotep I  e a Lenda Maçônica de Hiram Abiff. De sorte que, para a Maçonaria Moderna, a probabilidade de que a Lenda de Hiram Abiff, tenha tido como fonte os episódios que teriam marcado o reinado de Nefrhotep I, é bastante razoável; se bem que há outras lendas também envolvendo ou relacionadas com a arte ou ofício de construir.

Tanto os episódios dos Mestres Nefrhotep I e Hiram Abiff, servem-nos como advertência de que o mal pode habitar o coração dos homens e, fazer deles seus servos, como tantos que assistimos massacrarem pessoas que não os aprovam como tiranos .




[1] Javé e também Jeová, é o nome da divindade dos israelitas, traduzido para o nosso idioma como “Deus”, que habitava  no Sanctum Sanctorum (Santo dos Santos) no Templo de Salomão.  MAAT era a divindade egípcia que representava a verdade e a justiça, fazendo lembrar também o dever de retidão de caráter,  conforme é ensinada pela Franco Maçonaria Especulativa.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A Corporação de Ladrões








Luiz Carlos Nogueira









“Um dos aprendizes de Chi, o ladrão, fez-lhe a seguinte pergunta: ‘Pode-se encontrar a Lei na vida de ladrão?’ (Ele pensava, evidentemente, na Lei transcendente de Lao Tsu e do Chuang Tsu, da qual eles diziam que governa todas as coisas.)
Chi, o ladrão, respondeu: ‘Cite-me, então, alguma coisa que não obedeça à Lei? Há a inteligência que sabe onde encontrar o que roubar, a coragem de entrar primeiro, o heroísmo que consiste em sair por último, a aptidão para calcular as possibilidades de sucesso, a justiça na partilha dos benefícios. Nenhum bandido importante deixou de possuir essas cinco qualidades.’ CHUANG TSU”






Não, não. Não se assustem não é nada referente a algum partido político aqui do Brasil, trata-se de um interessante relato de Raymond Bernard, quando era o Grande Mestre da Ordem Rosacruz (AMORC), da França e países de Língua Francesa, em seu livro “Encontros com o insólito”, publicado no Brasil pela Editora Renes, Rio de Janeiro.

Diz o escritor, no início da sua narrativa, que ela “A primeira vista, ela não tem qualquer alcance moral, nem contém qualquer ensinamento, ao menos até as últimas linhas de uma conclusão que, curiosamente, sem uma nova permanência em Marraquexe, em fevereiro de 1969, teria sido radicalmente diferente e, sem dúvida, bem dificultada.”

Pois bem, Bernard, na intenção de adquirir mais conhecimentos, lançou-se numa aventura, levado pelo seu anfitrião ou seu guia até Ahmed, da Corporação de Ladrões existente em Marráquexe (Marráquexe,2 Marraquexe ou Marrakech), cidade do centro-sudoeste do Marrocos.

Mas antes, porém, como era próxima ao Hotel La Mamounia, o contista foi à Praça Djemaa-El-Fna por volta das cinco horas da tarde onde perambulou até à noite, vendo prestidigitadores, vendedores, etc. etc. e observando a característica do mundo Islame, que segundo ele, é a hospitalidade, não obstante os árabes tenham uma prodigiosa intuição, que lhes permite saber imediatamente que os ama com dignidade e “quem vem a eles como amigo, mesmo curioso”.

Conta o autor, conforme suas palavras a seguir, que: “Eles têm horror do servilismo e respeitam a nobreza de atitude e de caráter, mas não admitem arrogância, mesmo que a suportem com uma aparente complacência. Eles se aproveitarão, entretanto, sem remorsos e sem hesitação, de quem quer que aceite que se aproveitem dele. Por que censurá-los por isso? Sob formas sem dúvida diferentes, a mesma prática se encontra em todos os países. Ela é simplesmente camuflada com os ornamentos enganadores da civilização de uma sociedade dita de consumo. Tudo é fonte de prazer para o árabe, e, antes de tudo, o discurso, a discussão. Aquele que aceitasse, sem dizer palavra, o preço proposto, estragaria a satisfação do vendedor. Ouvi nos bazares de Túnis um negociante nervoso dizer ao europeu tímido que se preparava para lhe pagar, sem uma palavra, a quantia pedida: "Mas... pechinche! Diga mais barato!", e, como o outro não reagisse, um desprezo indizível estampou-se no rosto do vendedor. Ele tomou o dinheiro sem um agradecimento e me olhou, sacudindo os ombros. Sem dúvida, ele havia ganho mais que de costume, mas sem alegria. Rapidamente lhe devolvi essa alegria, discutindo mais de quinze minutos sobre o preço de um bibelô que, finalmente, obtive por preço irrisório. O outro tinha pago por mim, e o negociante, rindo às gargalhadas, apertou-me longamente a mão, sem saber como agradecer. Ele também, certamente, estava ganhando ...”

Assim, teria sido lá que o autor encontrou-se com Ahmed, pois o hotel luxuoso atraia para as suas proximidades, todos aqueles malandros que esperavam tirar algum proveito dos estrangeiros que nele se hospedavam e se encontrassem por seus arredores.

Andando por lá, de repente um homem lhe agarra pelos ombros, babando e gritando palavras que ele não entendia. E quando o autor lhe perguntou o que queria, o homem respondeu: “...Money! Twenty dollars!! – Não os tenho disse o autor, deixe-me.

Logo a seguir alguém agarrou o agressor, dizendo-lhe poucas e ininteligíveis palavras deixando-o estupefato. Depois, voltando-se para o autor e parecendo constrangido, pediu-lhe desculpas dizendo que o atacante estava bêbado. Ao que o autor replicou — “Bêbado? Eu pensava que o Corão proibia a embriaguez!”

Sim, disse o seu defensor, “mas esse não escuta o Corão”.

“Então, ele não irá ao país onde correm os rios...”, asseverou-lhe Raymond Bernard.

Surpreso o seu defensor perguntou: “Leste o Corão ?”

Sim, li-o, mas em francês. “Como vê, não posso ser muçulmano, já que não leio o árabe...”

“É-se muçulmano dentro do coração...”, respondeu o seu defensor.

“Você fala perfeitamente o francês. Onde o estudou?

“Aqui na Missão. Tive bons professores...”

“Em todo caso, você me prestou um grande favor e eu agradeço. Como você se chama?”

“Ahmed, e tu?”


Enquanto se conheciam, Raymond falou a Ahmed sobre o Alcorão, cativando-o dessa forma, o que o levou a convidá-lo para ir à sua casa conhecer sua família. Porém ao levantar os olhos, surpreso, Raymond viu à sua frente dois homens, os Decoudu, que eram seus amigos e o chamaram de Grande Mestre. Esses lances estavam sendo observados, de perto, sem perceberem, por Abdeljalil, que mais adiante saberão de quem se trata.

Nesse noite os Decoudu, desaconselharam Raymond a ir à casa do Ahmed, o que reforçaram no dia seguinte, dizendo-lhe: “É preciso ter prudência, os ladrões pululam aqui como ali. O senhor corre risco de se encontrar numa situação imprevisível, perigosa...”. Mas Raymond replicou: “...perigosa, talvez; imprevisível, sem dúvida! Ah! Amigos Decoudu, você não imaginavam que eu tivesse tanta razão, pois, afinal de contas, o demônio da curiosidade foi mais forte que todos os conselhos de prudência, já que me dirigi à casa de Ahmed, tendo daí resultado a aventura que relato nesta páginas...”.

Já na casa de Ahmed (este foi esperar Raymond no seu hotel, para trazê-lo), seguiu-se uma parte do diálogo:

“— Ahmed, estou profundamente emocionado com tua acolhida e te agradeço. Agora, tenho quase vergonha dos pensamentos que tive, por causa de observações que me tinham sido feitas antes que eu viesse a teu país.

— Por quê? Que observações?

— Olha, Ahmed, há no mundo inteiro — e não somente aqui — pessoas cuja única ocupação consiste em se apropriar do que é dos outros e para isso elas não hesitam em matar...

— Se matam, são assassinos, e não ladrões, Raymond... Os verdadeiros ladrões não são assassinos... Não se deve confundir!

Sua interrupção categórica, quase agressiva, perturba-me, mas continuo:

— Nunca supus, nem por um instante, que pudesses ser um criminoso. Entretanto, não afastei logo a ideia de que pudesses ser um ladrão. Perdoa-me, Ahmed.

Ele senta-se à minha esquerda e, com seu copo de chá na mão, depois de cortesmente me haver dado o meu, me considera com um sorriso amigável e seus olhos castanhos brilham com uma malícia que certamente ele queria tornar ainda mais torturante.

— Tens razão, Raymond. Não sou um assassino, mas nada tenho a te perdoar, pois não te enganaste... sou um ladrão.

Não sei como não deixei cair o copo de chá escaldante. Naquele momento, devo ter, inconscientemente, crispado os dedos e apertado ainda mais o copo, não sob a influência do medo, mas sob a de um espanto misturado a uma profunda perturbação. Ahmed, um ladrão, e confessando calmamente, como se fosse um fato inteiramente natural, como ele teria declarado: "Sou carpinteiro" ou "Sou comerciante"!

— Ladrão! Tu, Ahmed, e tu o dizes assim, simplesmente.

— Digo-o a ti, Raymond. Não é a mesma coisa que dizer a qualquer um.

— Por que, Ahmed?

— Abdeljalil falou de ti. És uma espécie de santo e constatei que é verdade. Conheces o Corão melhor que eu.

— Oh! Não creio que eu seja tão santo como tu afirmas. Aprendi a amar e a compreender os seres, só isso. Não há diferença entre ti e mim...

— Tu também és ladrão?

Como ele pode compreender isso de minhas palavras? Ah! sim: Não há diferença...

— Não, Ahmed, não sou um ladrão. Eu queria dizer que os seres se assemelham. Todos são homens, com suas qualidades e seus defeitos. Mas quero fazer uma pergunta. Alguma vez pensaste em roubar-me?

— Em roubar-te? Tu! Nunca, Raymond. Ao contrário, nós te protegemos. Tu bem o viste, na praça...

— Tu me surpreendes e me intrigas... Assim, Abdeljalil e tu, resolveram proteger-me. Mas por que, Ahmed, por quê? ― Abdeljalil e eu, Ali, Mustafá e muitos outros... Anteontem, na praça, todos nós te olhamos para depois te reconhecer.

— Todos?

— É, todos! A confraria, a corporação, se queres...”

Dessa forma é que Raymond acabou conhecendo a Corporação dos Ladrões, por deferência do Chefe Abdeljalil, sendo que havia prometido a Ahmed que nunca revelaria a quem quer que seja o que lhe fosse proibido mencionar, mas que queria escrever a história daquele encontro e falar sobre essa confraria ou corporação. Antes porém, Ahmed lhe disse que falaria com o chefe, mas que só deveria escrever sobre o que lhe fosse consentido, caso contrário deveria esquecer tudo aquilo que havia visto e ficara sabendo. Prometido? — Prometido, Ahmed.

— A confraria dos ladrões de Marráquexe é poderosa e importante pelo número. [...] Aqui somos os mais fortes...

Impressionado Raymond perguntou a Ahmed como se tornava um ladrão daquela confraria, ao que este lhe respondeu que: “— É preciso provar sua habilidade; é preciso querer ser ladrão. Quando se é um bom ladrão, um ladrão sério, é-se procurado, assimilado. Caso contrário, não se pode ser ladrão independente. A confraria luta mais eficazmente que a polícia contra os ladrões oportunistas, cuja má maneira de agir poderia recair sobre nós...”

Como se percebe, havia ou há uma espécie de código de ética da confraria e dos confrades. O ladrão “honesto” que fosse admitido poderia renunciar, se encontrasse um trabalho, porque segundo Ahmed, roubar só dava ou dá para comer e vestir e para cuidar da família no que fosse o mínimo necessário. De tal sorte, o produto do furto era ou é, dividido rigorosa e equitativamente pela quantidade de ladrões mais dois, em reunião da corporação, em lugares diferentes à cada dia, sendo que para participar havia senha. E quando Raymond perguntou: “[...] Ahmed, os ladrões roubam-se entre si?”, ele o interrompeu chocado: “— Nunca! Juramos sobre o Corão, diante de Alá, e um juramento como esse entre nós não se viola. [...]”

Também, com relação a ele, Raymond, o mesmo demonstrou-se surpreso por não ter sido roubado, inclusive durante todo o tempo de sua permanência entre eles. Primeiro Ahmed lhe disse que ele só andava com algumas moedas, nem mesmo carregava seu relógio e, depois porque ele já havia sido estudado na praça já no primeiro dia. Ele teria sido um possível candidato a ser roubado sim, se não fosse o encontro que teve com Abdeljali, porquanto este andava muito doente e além de outros ladrões, nenhum outro marroquino lhe falava, muito menos ainda, os estrangeiros, mas ele, Raymond falou-lhe dando-lhe conselhos recomendando para que não fumasse o kif. E o Chefe o escutou, como aconteceu com ele mesmo Ahmed, para quem Raymond lhe recitou algumas suratas do Corão. Além disso lhe deste dez dirhams. Deste modo o Chefe afirmou que Alá havia lhe enviado (Raymond) e ninguém discutiu.

Como os leitores podem ver, essa aventura, aliás, segundo o autor – verdadeira, e que poderia render mais algumas linhas para ser contada, mas não devo me tornar cansativo,  portanto, resumo apenas algumas palavras do autor (Raymond), depois de ter voltado para o hotel, levado em segurança por Ahmed,  porque foram as que me chamaram a atenção:

“[...] se considerarmos as leis de destruição e de reconstrução, certos seres, coletiva ou individualmente, têm por destino destruir, enquanto que outros são encarregados de reconstruir, e aí intervém naturalmente na lei fundamental de compensação ou carma. Cada experiência humana tem um motivo para aquele que passa por ela e para o mundo no qual ele vive. Todo homem pode ser, num momento, destruidor e, em outro, construtor.”

[...]

“Certamente, não pretenda justificar os ladrões ou desculpá-los. Digo apenas que eles existem e que é preciso que os levemos em consideração numa tentativa de explicação de um universo onde nada se manifesta sem uma razão profunda, difícil, às vezes, reconheço-o, de perceber. Em todo caso, se uma escolha devesse ser feita quanto à maneira de ser ladrão, vossa escolha seria a mesma que a minha: nós preferiríamos Ahmed e sua corporação ao banditismo que vemos manifestar-se em outras partes do mundo, esteja ele dentro do quadro das leis ou fora delas. Mas nenhuma escolha nos é proposta e este mundo de ilusão deve ser aceito por nosso entendimento errôneo, não importa qual seja esse entendimento...”

Ao se despedir a Corporação confiou Raymond um sinal e uma senha, para que fosse usada discretamente, para se proteger num lugar como na praça de Djemaa-El-Fna.

Depois disso, o autor (Raymond) teve que retornar a Marráquexe, quando teve a oportunidade de novamente se encontrar com Ahmed. Porém desta vez seu amigo havia deixado a Corporação e se tornado enfermeiro de um hospital em Casablanca. E respondendo à pergunta de Raymond, Ahmed disse-lhe que mudou de vida porque o trabalho no hospital era mais rendoso.



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