Luiz Carlos Nogueira
Hoje sabemos da importância e a finalidade do sangue, ou  seja, de como ele sustenta a vida, especialmente dos seres humanos, porque o Dr.  William Harvey (Folkestone, 1 de abril de  1578 — Londres, 3 de junho de 1657), médico britânico, dotourado pela  Universidade Cambridge, pois foi ele que pela primeira vez descreveu e mapeou  corretamente os detalhes do sistema circulatório do sangue que é bombeado por  todo o corpo pelo coração. Seus estudos nesse particular se inspiraram na idéias  de René Descartes, que em sua "Descrição do Corpo Humano" disse que as artérias  e as veias eram canos que carregavam nutrientes pelo corpo.
Pois bem, uma das ramificações evangélica denominada “Testemunhas de Jeová”, não aceita a transfusão de sangue, mesmo nos casos de grave necessidade de socorro médico, em que o paciente corra risco de morrer.
Eles fundamentam sua recusa em doar e receber sangue de outra pessoa:
— primeiro por questões da sua ética religiosa, porque devemos acreditar no Dador da Vida e confiar nas suas orientações, cuja garantia se baseia em Isaías “48:17 Assim disse Jeová, teu Resgatador, o Santo de Israel: “Eu, Jeová, sou teu Deus, Aquele que te ensina a tirar proveito, Aquele que te faz pisar no caminho em que deves andar.”;
—segundo porque o Criador em suas primeiras referências sobre o sangue, teria declarado em Gênesis, Capítulo 9 e versículos a seguir transcritos : “3 Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. [...]. 4 Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer. 5 E, além disso, exigirei de volta vosso sangue das vossas almas. Da mão de cada criatura vivente o exigirei de volta; e da mão do homem, da mão de cada um que é seu irmão exigirei de volta a alma do homem. 6 Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue, pois à imagem de Deus fez ele o homem.”
Segue-se ainda em Levítico, Capítulo 17 e versículos de 10 a 16:
“10 Quanto a qualquer homem da casa de Israel ou algum  residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de  sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e  deveras o deceparei dentre seu povo. 11 Pois a alma da carne está no sangue, e  eu mesmo o pus para vós sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas,  porque é o sangue que faz expiação pela alma [nele]. 12 Foi por isso que eu  disse aos filhos de Israel: “Nenhuma alma vossa deve comer sangue e nenhum  residente forasteiro que reside no vosso meio deve comer sangue.
13 Quanto a  qualquer homem dos filhos de Israel ou algum residente forasteiro que reside no  vosso meio, que caçando apanhe um animal selvático ou uma ave que se possa  comer, neste caso tem de derramar seu sangue e cobri-lo com pó. 14 Pois a alma  de todo tipo de carne é seu sangue pela alma nele. Por conseguinte, eu disse aos  filhos de Israel: “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a  alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida].”  15 Quanto a qualquer alma que comer um corpo [já] morto ou algo dilacerado por  uma fera, quer seja natural quer residente forasteiro, neste caso terá de lavar  suas vestes e banhar-se em água, e ele terá de ser impuro até à noitinha; e ele  terá de ser limpo. 16 Mas, se não as lavar e se não banhar sua carne, então terá  de responder pelo seu erro.”
Para as “Testemunhas de Jeová”, aceitar a transfusão de sangue é o mesmo que comer sangue.
Segundo afirmam, trata-se de regras mais do que dietéticas, porque envolvem princípio moral, pois o sangue humano não deve ser mal empregado, devido seu alto significado simbólico, qual seja — representa a vida concedida por Jeová. Além disso, consideram o aspecto infecto-contagioso (das doenças transmitidas pelo sangue). Para elas — o sangue não é necessário, e os pacientes transfundidos correm significativo risco de sofrer efeitos indesejáveis.
Não sou médico para avaliar as afirmações de que existem meios alternativos para não se fazer a transfusão de sangue. As explicações a esse respeito, abaixo reproduzidas, podem ser obtidas no site http://www.watchtower.org/t/hb/article_03.htm :
"Alternativas de qualidade para a transfusão
O leitor poderia pensar: ‘As transfusões são perigosas, mas  será que existem alternativas de qualidade?’ É uma boa pergunta, e observe a  palavra “qualidade”.
Todos, inclusive as Testemunhas de Jeová, desejam um  tratamento médico eficaz de alta qualidade. O Dr. Grant E. Steffen comentou  sobre dois elementos-chaves: “Tratamento médico de qualidade é a capacidade de  os elementos desse tratamento alcançarem alvos médicos e não-médicos legítimos.”  (Revista The Journal of the American Medical Association, 1.° de julho de 1988)  ‘Alvos não-médicos’ incluiriam não violar a ética ou a consciência do paciente,  baseada na Bíblia. — Atos  15:28, 29.
“Temos de concluir que, atualmente, existem  muitos pacientes que recebem componentes sanguíneos que não têm nenhuma  probabilidade de beneficiar-se duma transfusão (o sangue não é necessário), e,  ademais, correm significativo risco de sofrer efeitos indesejáveis. Nenhum  médico exporia deliberadamente um paciente a uma terapia que não pudesse  beneficiá-lo, mas que talvez o prejudicasse, mas é exatamente isso que ocorre  quando o sangue é transfundido desnecessariamente.” — Transfusion-Transmitted  Viral Diseases (Viroses Transmitidas por Transfusão), de 1987.
Existem meios  legítimos e eficazes de cuidar de graves problemas de saúde sem se usar sangue?  Felizmente a resposta é sim.
Embora a maioria dos cirurgiões afirme só ter  dado sangue quando isso era absolutamente necessário, diminuiu rapidamente o  emprego de sangue, por parte deles, depois que surgiu a epidemia de AIDS. Um  editorial do periódico Mayo Clinic Proceedings (setembro de 1988) dizia que “um  dos poucos benefícios da epidemia” foi que “resultou em várias estratégias por  parte dos pacientes e dos médicos para evitar a transfusão de sangue”. Um  dirigente de banco de sangue explica: “O que deveras mudou foi a intensidade da  mensagem, a receptividade dos clínicos à mensagem (por causa da maior percepção  dos riscos), e a demanda para que se considerassem as alternativas.” — Periódico  Transfusion Medicine Reviews, de outubro de 1989.
Observe que existem  alternativas! Isto se torna compreensível quando examinamos os motivos pelos  quais se transfunde sangue.
A hemoglobina contida nos glóbulos vermelhos  transporta o oxigênio necessário para a boa saúde e a vida. Assim, caso uma  pessoa tenha perdido muito sangue, pareceria lógico apenas repô-lo. Normalmente,  dispõe-se de cerca de 14 ou 15 gramas de hemoglobina em cada 100 centímetros  cúbicos de sangue. (Outra forma de medir sua concentração é o hematócrito, que  comumente é de cerca de 45 por cento.) A “regra” aceita era de transfundir um  paciente antes duma operação se sua taxa de hemoglobina fosse inferior a 10 (ou  um hematócrito de 30 por cento). A revista suíça Vox Sanguinis (março de 1987)  noticiou que “65% dos [anestesiologistas] exigiam que os pacientes tivessem uma  taxa pré-operatória de hemoglobina de 10 g/dL para a cirurgia eletiva”.
Mas,  numa conferência sobre a transfusão de sangue, realizada em 1988, o Professor  Howard L. Zauder perguntou: “Como Foi que Obtivemos um ‘Número Mágico’?” Ele  declarou expressamente: “A etiologia dessa exigência de que o paciente deva ter  10 gramas de hemoglobina (Hgb) antes de receber anestesia está envolta em  tradição, está revestida de obscuridade e não é comprovada por evidência clínica  ou experimental.” Imagine só os muitos milhares de pacientes submetidos a  transfusões que foram motivadas por uma exigência ‘obscura, não  comprovada’!
Alguns talvez fiquem imaginando: ‘Por que será que um nível 14  de hemoglobina é normal, se a pessoa consegue passar com muito menos?’ Bem, a  pessoa dispõe assim de considerável reserva da capacidade de transporte de  oxigênio, de modo que esteja pronta para algum exercício ou trabalho pesado.  Estudos feitos de pacientes anêmicos até mesmo revelam que “é difícil detectar  um déficit na capacidade de trabalho, com concentrações de hemoglobina tão  baixas quanto 7 g/dL. Outros têm encontrado evidência de apenas uma moderada  redução do desempenho”. — Contemporary Transfusion Practice (A Prática  Transfusional Contemporânea), 1987.
Enquanto que os adultos se ajustam a uma  baixa taxa de hemoglobina, que dizer das crianças? O Dr. James A. Stockman III  diz: “Com poucas exceções, os bebês prematuros apresentarão um declínio da  hemoglobina do primeiro ao terceiro mês . . . As indicações de transfusão no  berçário não estão bem definidas. Deveras, muitos bebês parecem tolerar níveis  notavelmente baixos de concentração de hemoglobina, sem nenhuma dificuldade  clínica aparente.” — Revista Pediatric Clinics of North America, de fevereiro de  1986.
“Alguns autores declararam que valores tão baixos da hemoglobina  quanto de 2 a 2,5 g/100 ml podem ser aceitáveis. . . . A pessoa saudável poderá  tolerar uma perda sanguínea de 50 por cento da massa de glóbulos vermelhos e  permanecer quase que inteiramente assintomática, caso a perda do sangue ocorra  por certo período de tempo.” — Techniques of Blood Transfusion (Técnicas da  Transfusão de Sangue), de 1982.
Tais informações não significam que não se  precisa fazer nada quando uma pessoa perde muito sangue num acidente, ou numa  operação. Caso a perda seja rápida e acentuada, cai a pressão arterial da  pessoa, e ela pode entrar em choque. O que se precisa basicamente é que se faça  cessar a hemorragia e se restaure o volume do sistema circulatório. Isso  impedirá o choque e manterá em circulação as restantes hemácias e outros  componentes do sangue.
A reposição do volume do plasma pode ser conseguida  sem se usar sangue total ou plasma sanguíneo.* Diversos  líquidos que não contêm sangue constituem eficazes expansores do volume do  plasma. O mais simples de todos é a solução salina, que é tanto barata como  compatível com o nosso sangue. Existem também líquidos dotados de propriedades  especiais, tais como a dextrana, o Haemaccel, e a solução de lactato de Ringer.  A hidroxietila de amido (HES; amido-hidroxietil) é um mais recente expansor do  volume do plasma e “pode ser seguramente recomendado para aqueles pacientes  [queimados], que objetem a produtos de sangue”. (Journal of Burn Care &  Rehabilitation, janeiro/fevereiro de 1989) Tais líquidos apresentam vantagens  definitivas. “Soluções cristalóides [tais como a solução salina normal e o  lactato de Ringer], o Dextran e o HES são relativamente atóxicos e baratos,  prontamente disponíveis, podem ser estocados à temperatura ambiente, não exigem  testes de compatibilidade e estão isentos do risco de doenças transmitidas pela  transfusão.” — Blood Transfusion Therapy—A Physician’s Handbook (A Terapia da  Transfusão de Sangue — Manual do Médico), de 1989.
Talvez pergunte, porém:  ‘Por que funcionam bem os líquidos de reposição não-sanguíneos, uma vez que eu  preciso de glóbulos vermelhos para fazer com que o oxigênio seja transportado  por todo o meu corpo?’ Conforme mencionado, a pessoa dispõe de reservas para o  transporte de oxigênio. Caso perca sangue, acionam-se maravilhosos mecanismos  compensatórios. Seu coração bombeia mais sangue em cada batimento. Visto que o  sangue perdido foi substituído por um líquido adequado, o sangue agora diluído  flui mais facilmente, mesmo nos pequenos vasos. Em resultado de mudanças  químicas, mais sangue é liberado para os tecidos. Estas adaptações são tão  eficazes que, se somente a metade de suas hemácias permanecerem, o transporte de  oxigênio poderá ser até cerca de 75 por cento do normal. Um paciente em repouso  utiliza apenas 25 por cento do oxigênio disponível em seu sangue. E a maioria  dos anestésicos reduz a necessidade de oxigênio do corpo."
O fato é que diante de uma situação de emergência, em que o indivíduo (paciente) tenha sofrido um acidente ou mesmo uma intervenção cirúrgica, e que necessite de transfusão de sangue para evitar o risco de vir a óbito, o médico fica exposto a uma série de consequências:
— primeira, não transgredir o JURAMENTO OFICIAL DO CURSO DE MEDICINA, instituído pela Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial - 1948, a mais antiga e conhecida de todas, que tem sido utilizada em vários países na solenidade de recepção aos novos médicos inscritos na respectiva Ordem ou Conselho de Medicina. A versão clássica em língua portuguesa tem a seguinte redação:
“Eu, solenemente, Juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra.”
Está por trás disso, a filosofia herdada da escola hipocrática, criada e inspirada na personagem que se tornaria o paradigma de todos os médicos - Hipócrates. Ele separou a medicina da religião e da magia; afastou as crenças em causas sobrenaturais das doenças e fundou os alicerces da medicina racional e científica. Ao lado disso, deu um sentido de dignidade à profissão médica, estabelecendo as normas éticas de conduta que devem nortear a vida do médico, tanto no exercício profissional, como fora dele.
Da coleção de 72 livros contemporâneos da escola hipocrática, conhecida como Corpus hippocraticum, sete desses livros tratam exclusivamente da ética médica, quais sejam: Juramento, Da lei, Da Arte, Da Antiga Medicina, Da conduta honrada, Dos preceitos, Do médico, cujo conteúdo extenso, não caberia transcrever aqui.
— segunda, que tem raízes nas profundezas do ser do profissional da medicina. O médico tem por vocação um grande sentimento humano e humanitário de minorar e se puder e tiver ao seu alcance, acabar com o sofrimento do ser humano e salvar vidas. Isto está ínsito na sua alma, e constitui penso eu, um fator psicológico que só os anjos não enfrentam, porque estes podem fazer milagres;
“CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Não cabe ao poder judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamento médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do medico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao medico e ao hospital demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar.
Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-cientifica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art-146, §3°, I, do Código Penal). [...] O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la. [...] Abrir mão de direitos fundamentais, em nome de tradições, culturas, religiões, costumes, é, queiram ou não, preparar caminho para a relativização daqueles direitos e para que venham a ser desrespeitados por outras fundamentações, inclusive políticas. [...] É o voto.” (TJRGS. Apelação Cível. 595000373. 6ª.C.C. Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira. J. 28.03.1995)
Aliás, Miguel Kfouri Neto ( in “Responsabilidade Civil Médico”. 5.ed. rev. e atual. à luz do novo Código Civil, com acréscimo doutrinário e jurisprudencial. São Paulo: RT, 2003. p.175), diz que ainda não encontrou registro jurisprudencial, com decisão condenando algum médico à reparação civil por ter procedido à transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável.
Também, segundo o referido autor, no campo penal, o TACrimSP teve oportunidade de se manifestar sobre a matéria, “sic”:
“A vida humana é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade que ao indivíduo, egoisticamente, e a lei vigente exerce opção axiológica pela vida e pela saúde, inadmitindo a exposição desses valores primordiais na expressão literal do texto, a perigo direto e iminente [...] Uma vez comprovado efetivo perigo para a vítima, não cometeria delito nenhum o médico que, mesmo contrariando a vontade expressa dos por ela responsáveis, à mesma tivesse ministrado transfusão de sangue.”
Embora a cultura brasileira carregue em si uma enorme tolerância religiosa, contudo, o Estado brasileiro é laico. Não tem o comando religioso. De tal sorte, a preservação da vida humana deve ser totalmente amparada, já que ela é considerada um bem coletivo, de interesse social, portanto, o indivíduo, em caso de emergência sujeito ao perigo de morte, deve receber tratamento médico adequado.
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