terça-feira, 20 de março de 2012

6. Discípulo e Mestre – Jiddu Krishnamurti


“Disseram-me que sou discípulo de um certo mestre”, começou.

— “Acreditais que sou realmente? Desejo deveras saber o que pensais a esse respeito. Pertenço a uma Sociedade que conheceis, e os dirigentes exteriores, respresentantes dos guias interiores ou mestres, me comunicaram que, em razão dos meus serviços à Sociedade, me fizeram discípulo, e agora tenho a oportunidade de me tornar iniciado do primeiro grau, nesta vida.” Ele falava sério, e conversamos durante algum tempo.

Toda espécie de recompensa é sumamente agradável, principalmente uma suposta recompensa espiritual, que podemos desfrutar quando somos, em certo grau, indiferentes às honras mundanas.

Ou, quando não temos muito bom êxito neste mundo, é-nos muito grato pertencer a um grupo eleito por um suposto ser espiritual, altamente adiantado, porquanto então fazemos parte de um conjunto que trabalha por uma grande idéia, e naturalmente seremos recompensados pela obediência e pelos sacrifícios que fizemos pela causa.

Se não é propriamente um recompensa, é um reconhecimento do nosso adiantamento espiritual, assim como numa organização bem administrada se reconhece a eficiência de alguém a fim de incentivá-lo a fazer mais e melhor.

Num mundo onde se adora o bom êxito, compreende-se e estimula-se esta espécie de progresso pessoal. Mas quando outra pessoa me diz que sou discípulo de um Mestre, ou quando penso que o sou, isso conduz, sem dúvida nenhuma, a torpes formas de exploração.

Infelizmente, tanto o explorador como o explorado sentem uma vaidosa exultação nas suas mútuas relações. A expansão contínua dessa vaidade é considerada como progresso espiritual; torna-se, entretanto, particularmente feia e brutal quando há intermediários entre o discípulo e o Mestre, quando este se acha noutro país ou, por outra razão qualquer, é inacessível e não há um direto contato físico entre ambos.

Esta inacessibilidade e falta de contato direto abre a porta à automistificação e a ilusões grandiosas, porém infantis, e estas ilusões são exploradas pelos mais astutos, os ambiciosos de glória e poder.

Só há recompensa e punição, quando não humildade. A humildade não é o resultado final de exercícios e renúncias espirituais.

A humildade não é uma perfeição, uma virtude que cumpre cultivar.

Uma virtude, cultivada, não é mais virtude, é apenas aquisição de uma nova excelência, superação de resultados anteriores. Uma virtude cultivada não é negação do eu, porém, antes, exaltação negativa do eu.

A humildade desconhece a divisão entre superior e inferior, entre mestre e discípulo. Enquanto existir a separação entre mestre e discípulo, entre a realidade de cada um de nós, é impossível a compreensão. Na compreensão da verdade não há mestres nem discípulos, não há adiantados, nem atrasados. A verdade é a compreensão do que é, de momento em momento, livre da carga ou do resíduo do momento passado.

A recompensa e a punição só podem fortalecer o eu, o que é negar a humildade. A humildade está no presente e não no futuro.

Ninguém pode tornar-se humilde. Via a ser é da continuidade à arrogância do eu, a qual se esconde na prática de uma virtude. Como é forte a nossa vontade de sermos bem sucedidos, de chegarmos a ser! Como podem andar juntos o bom êxito e a humildade? É a isso, entretanto que aspiram o explorador e o explorado “espirituais”, e aí, só se encontram conflito e sofrimento.

“Quer dizer, então, que não existe o mestre, e que ser discípulo é uma ilusão, uma hipocrisia?” — perguntou.

Que importa se o mestre existe ou não! Para os exploradores, para as escolas e sociedades secretas, sim. Mas, para o homem que busca a verdade, a qual traz felicidade suprema, esta questão, por certo, é de todo irrelevante. O homem rico e o (*) cule são tão importantes como o mestre e o discípulo. Se os mestres existem ou não existem, se há distinções entre iniciados, discípulos etc., não importa; o importante é que compreendais a vós mesmos; sem autoconhecimento, o que pensais, o que raciocinais, não tem base alguma. Se não vos conhecerdes em primeiro lugar, como podereis conhecer o que é verdadeiro? É inevitável a ilusão quando não existe autoconhecimento. É infantil acreditarmos quando alguém nos diz que somos isto ou aquilo. Cuidado com o homem que vos oferece uma recompensa, neste mundo ou no próximo!

Notas:

[* s. m. || índio ou chim que emigra para trabalhar por salário em países estranhos, o mesmo que cole1. F. ingl. Cooly, do dravídico Kuli (salário)] – Informação coletada por este blogueiro, do Dicionário Caldas Aulete, e não está contida no livro do qual este texto foi extraído.


Texto extraído do Livro “Comentário Sobre o Viver” de J. Krishnamurti, traduzido por Hugo Veloso e publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, Sp, 4ª Ed. 1981.


As acentuações foram mantidas tais como estão na obra citada, portanto, não obedecem ao novo acordo ortográfico.


Leitura recomendada:

"Não chame ninguém de mestre "- de Joyce Collin-Smith - São Paulo, SP: Editora Sciliano

Um comentário:

  1. Cuidado com as recompensas...Cuidado com os elogios... Cuidado com os bajuladores... Cuidado...enfim, tão bom ter o autoconhecimento e não viver de ilusões, correndo como louco atrás de vaidades para satisfazer o EGO, creio que ainda falta muito para minha evolução, pois qtos dias perco atrás de bobeiras... quantas horas perco discutindo o sexo dos anjos... quantos minutos perco para realizar massagem no meu EGO... quantos segundos perco atrás de inutilidades e futilidades... sou mesmo um imbecil que tem muito que aprender...por isso afirmo sem medo de errar: SOU UM ETERNO APRENDIZ... e tenho que começar por mim o restante é OCASIONAL... Belo texto de J.KRISHNAMURTI, gostei e aprovei... ABRAÇOS - CICERO DE SOUZA GOMES

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