terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A Corporação de Ladrões








Luiz Carlos Nogueira









“Um dos aprendizes de Chi, o ladrão, fez-lhe a seguinte pergunta: ‘Pode-se encontrar a Lei na vida de ladrão?’ (Ele pensava, evidentemente, na Lei transcendente de Lao Tsu e do Chuang Tsu, da qual eles diziam que governa todas as coisas.)
Chi, o ladrão, respondeu: ‘Cite-me, então, alguma coisa que não obedeça à Lei? Há a inteligência que sabe onde encontrar o que roubar, a coragem de entrar primeiro, o heroísmo que consiste em sair por último, a aptidão para calcular as possibilidades de sucesso, a justiça na partilha dos benefícios. Nenhum bandido importante deixou de possuir essas cinco qualidades.’ CHUANG TSU”






Não, não. Não se assustem não é nada referente a algum partido político aqui do Brasil, trata-se de um interessante relato de Raymond Bernard, quando era o Grande Mestre da Ordem Rosacruz (AMORC), da França e países de Língua Francesa, em seu livro “Encontros com o insólito”, publicado no Brasil pela Editora Renes, Rio de Janeiro.

Diz o escritor, no início da sua narrativa, que ela “A primeira vista, ela não tem qualquer alcance moral, nem contém qualquer ensinamento, ao menos até as últimas linhas de uma conclusão que, curiosamente, sem uma nova permanência em Marraquexe, em fevereiro de 1969, teria sido radicalmente diferente e, sem dúvida, bem dificultada.”

Pois bem, Bernard, na intenção de adquirir mais conhecimentos, lançou-se numa aventura, levado pelo seu anfitrião ou seu guia até Ahmed, da Corporação de Ladrões existente em Marráquexe (Marráquexe,2 Marraquexe ou Marrakech), cidade do centro-sudoeste do Marrocos.

Mas antes, porém, como era próxima ao Hotel La Mamounia, o contista foi à Praça Djemaa-El-Fna por volta das cinco horas da tarde onde perambulou até à noite, vendo prestidigitadores, vendedores, etc. etc. e observando a característica do mundo Islame, que segundo ele, é a hospitalidade, não obstante os árabes tenham uma prodigiosa intuição, que lhes permite saber imediatamente que os ama com dignidade e “quem vem a eles como amigo, mesmo curioso”.

Conta o autor, conforme suas palavras a seguir, que: “Eles têm horror do servilismo e respeitam a nobreza de atitude e de caráter, mas não admitem arrogância, mesmo que a suportem com uma aparente complacência. Eles se aproveitarão, entretanto, sem remorsos e sem hesitação, de quem quer que aceite que se aproveitem dele. Por que censurá-los por isso? Sob formas sem dúvida diferentes, a mesma prática se encontra em todos os países. Ela é simplesmente camuflada com os ornamentos enganadores da civilização de uma sociedade dita de consumo. Tudo é fonte de prazer para o árabe, e, antes de tudo, o discurso, a discussão. Aquele que aceitasse, sem dizer palavra, o preço proposto, estragaria a satisfação do vendedor. Ouvi nos bazares de Túnis um negociante nervoso dizer ao europeu tímido que se preparava para lhe pagar, sem uma palavra, a quantia pedida: "Mas... pechinche! Diga mais barato!", e, como o outro não reagisse, um desprezo indizível estampou-se no rosto do vendedor. Ele tomou o dinheiro sem um agradecimento e me olhou, sacudindo os ombros. Sem dúvida, ele havia ganho mais que de costume, mas sem alegria. Rapidamente lhe devolvi essa alegria, discutindo mais de quinze minutos sobre o preço de um bibelô que, finalmente, obtive por preço irrisório. O outro tinha pago por mim, e o negociante, rindo às gargalhadas, apertou-me longamente a mão, sem saber como agradecer. Ele também, certamente, estava ganhando ...”

Assim, teria sido lá que o autor encontrou-se com Ahmed, pois o hotel luxuoso atraia para as suas proximidades, todos aqueles malandros que esperavam tirar algum proveito dos estrangeiros que nele se hospedavam e se encontrassem por seus arredores.

Andando por lá, de repente um homem lhe agarra pelos ombros, babando e gritando palavras que ele não entendia. E quando o autor lhe perguntou o que queria, o homem respondeu: “...Money! Twenty dollars!! – Não os tenho disse o autor, deixe-me.

Logo a seguir alguém agarrou o agressor, dizendo-lhe poucas e ininteligíveis palavras deixando-o estupefato. Depois, voltando-se para o autor e parecendo constrangido, pediu-lhe desculpas dizendo que o atacante estava bêbado. Ao que o autor replicou — “Bêbado? Eu pensava que o Corão proibia a embriaguez!”

Sim, disse o seu defensor, “mas esse não escuta o Corão”.

“Então, ele não irá ao país onde correm os rios...”, asseverou-lhe Raymond Bernard.

Surpreso o seu defensor perguntou: “Leste o Corão ?”

Sim, li-o, mas em francês. “Como vê, não posso ser muçulmano, já que não leio o árabe...”

“É-se muçulmano dentro do coração...”, respondeu o seu defensor.

“Você fala perfeitamente o francês. Onde o estudou?

“Aqui na Missão. Tive bons professores...”

“Em todo caso, você me prestou um grande favor e eu agradeço. Como você se chama?”

“Ahmed, e tu?”


Enquanto se conheciam, Raymond falou a Ahmed sobre o Alcorão, cativando-o dessa forma, o que o levou a convidá-lo para ir à sua casa conhecer sua família. Porém ao levantar os olhos, surpreso, Raymond viu à sua frente dois homens, os Decoudu, que eram seus amigos e o chamaram de Grande Mestre. Esses lances estavam sendo observados, de perto, sem perceberem, por Abdeljalil, que mais adiante saberão de quem se trata.

Nesse noite os Decoudu, desaconselharam Raymond a ir à casa do Ahmed, o que reforçaram no dia seguinte, dizendo-lhe: “É preciso ter prudência, os ladrões pululam aqui como ali. O senhor corre risco de se encontrar numa situação imprevisível, perigosa...”. Mas Raymond replicou: “...perigosa, talvez; imprevisível, sem dúvida! Ah! Amigos Decoudu, você não imaginavam que eu tivesse tanta razão, pois, afinal de contas, o demônio da curiosidade foi mais forte que todos os conselhos de prudência, já que me dirigi à casa de Ahmed, tendo daí resultado a aventura que relato nesta páginas...”.

Já na casa de Ahmed (este foi esperar Raymond no seu hotel, para trazê-lo), seguiu-se uma parte do diálogo:

“— Ahmed, estou profundamente emocionado com tua acolhida e te agradeço. Agora, tenho quase vergonha dos pensamentos que tive, por causa de observações que me tinham sido feitas antes que eu viesse a teu país.

— Por quê? Que observações?

— Olha, Ahmed, há no mundo inteiro — e não somente aqui — pessoas cuja única ocupação consiste em se apropriar do que é dos outros e para isso elas não hesitam em matar...

— Se matam, são assassinos, e não ladrões, Raymond... Os verdadeiros ladrões não são assassinos... Não se deve confundir!

Sua interrupção categórica, quase agressiva, perturba-me, mas continuo:

— Nunca supus, nem por um instante, que pudesses ser um criminoso. Entretanto, não afastei logo a ideia de que pudesses ser um ladrão. Perdoa-me, Ahmed.

Ele senta-se à minha esquerda e, com seu copo de chá na mão, depois de cortesmente me haver dado o meu, me considera com um sorriso amigável e seus olhos castanhos brilham com uma malícia que certamente ele queria tornar ainda mais torturante.

— Tens razão, Raymond. Não sou um assassino, mas nada tenho a te perdoar, pois não te enganaste... sou um ladrão.

Não sei como não deixei cair o copo de chá escaldante. Naquele momento, devo ter, inconscientemente, crispado os dedos e apertado ainda mais o copo, não sob a influência do medo, mas sob a de um espanto misturado a uma profunda perturbação. Ahmed, um ladrão, e confessando calmamente, como se fosse um fato inteiramente natural, como ele teria declarado: "Sou carpinteiro" ou "Sou comerciante"!

— Ladrão! Tu, Ahmed, e tu o dizes assim, simplesmente.

— Digo-o a ti, Raymond. Não é a mesma coisa que dizer a qualquer um.

— Por que, Ahmed?

— Abdeljalil falou de ti. És uma espécie de santo e constatei que é verdade. Conheces o Corão melhor que eu.

— Oh! Não creio que eu seja tão santo como tu afirmas. Aprendi a amar e a compreender os seres, só isso. Não há diferença entre ti e mim...

— Tu também és ladrão?

Como ele pode compreender isso de minhas palavras? Ah! sim: Não há diferença...

— Não, Ahmed, não sou um ladrão. Eu queria dizer que os seres se assemelham. Todos são homens, com suas qualidades e seus defeitos. Mas quero fazer uma pergunta. Alguma vez pensaste em roubar-me?

— Em roubar-te? Tu! Nunca, Raymond. Ao contrário, nós te protegemos. Tu bem o viste, na praça...

— Tu me surpreendes e me intrigas... Assim, Abdeljalil e tu, resolveram proteger-me. Mas por que, Ahmed, por quê? ― Abdeljalil e eu, Ali, Mustafá e muitos outros... Anteontem, na praça, todos nós te olhamos para depois te reconhecer.

— Todos?

— É, todos! A confraria, a corporação, se queres...”

Dessa forma é que Raymond acabou conhecendo a Corporação dos Ladrões, por deferência do Chefe Abdeljalil, sendo que havia prometido a Ahmed que nunca revelaria a quem quer que seja o que lhe fosse proibido mencionar, mas que queria escrever a história daquele encontro e falar sobre essa confraria ou corporação. Antes porém, Ahmed lhe disse que falaria com o chefe, mas que só deveria escrever sobre o que lhe fosse consentido, caso contrário deveria esquecer tudo aquilo que havia visto e ficara sabendo. Prometido? — Prometido, Ahmed.

— A confraria dos ladrões de Marráquexe é poderosa e importante pelo número. [...] Aqui somos os mais fortes...

Impressionado Raymond perguntou a Ahmed como se tornava um ladrão daquela confraria, ao que este lhe respondeu que: “— É preciso provar sua habilidade; é preciso querer ser ladrão. Quando se é um bom ladrão, um ladrão sério, é-se procurado, assimilado. Caso contrário, não se pode ser ladrão independente. A confraria luta mais eficazmente que a polícia contra os ladrões oportunistas, cuja má maneira de agir poderia recair sobre nós...”

Como se percebe, havia ou há uma espécie de código de ética da confraria e dos confrades. O ladrão “honesto” que fosse admitido poderia renunciar, se encontrasse um trabalho, porque segundo Ahmed, roubar só dava ou dá para comer e vestir e para cuidar da família no que fosse o mínimo necessário. De tal sorte, o produto do furto era ou é, dividido rigorosa e equitativamente pela quantidade de ladrões mais dois, em reunião da corporação, em lugares diferentes à cada dia, sendo que para participar havia senha. E quando Raymond perguntou: “[...] Ahmed, os ladrões roubam-se entre si?”, ele o interrompeu chocado: “— Nunca! Juramos sobre o Corão, diante de Alá, e um juramento como esse entre nós não se viola. [...]”

Também, com relação a ele, Raymond, o mesmo demonstrou-se surpreso por não ter sido roubado, inclusive durante todo o tempo de sua permanência entre eles. Primeiro Ahmed lhe disse que ele só andava com algumas moedas, nem mesmo carregava seu relógio e, depois porque ele já havia sido estudado na praça já no primeiro dia. Ele teria sido um possível candidato a ser roubado sim, se não fosse o encontro que teve com Abdeljali, porquanto este andava muito doente e além de outros ladrões, nenhum outro marroquino lhe falava, muito menos ainda, os estrangeiros, mas ele, Raymond falou-lhe dando-lhe conselhos recomendando para que não fumasse o kif. E o Chefe o escutou, como aconteceu com ele mesmo Ahmed, para quem Raymond lhe recitou algumas suratas do Corão. Além disso lhe deste dez dirhams. Deste modo o Chefe afirmou que Alá havia lhe enviado (Raymond) e ninguém discutiu.

Como os leitores podem ver, essa aventura, aliás, segundo o autor – verdadeira, e que poderia render mais algumas linhas para ser contada, mas não devo me tornar cansativo,  portanto, resumo apenas algumas palavras do autor (Raymond), depois de ter voltado para o hotel, levado em segurança por Ahmed,  porque foram as que me chamaram a atenção:

“[...] se considerarmos as leis de destruição e de reconstrução, certos seres, coletiva ou individualmente, têm por destino destruir, enquanto que outros são encarregados de reconstruir, e aí intervém naturalmente na lei fundamental de compensação ou carma. Cada experiência humana tem um motivo para aquele que passa por ela e para o mundo no qual ele vive. Todo homem pode ser, num momento, destruidor e, em outro, construtor.”

[...]

“Certamente, não pretenda justificar os ladrões ou desculpá-los. Digo apenas que eles existem e que é preciso que os levemos em consideração numa tentativa de explicação de um universo onde nada se manifesta sem uma razão profunda, difícil, às vezes, reconheço-o, de perceber. Em todo caso, se uma escolha devesse ser feita quanto à maneira de ser ladrão, vossa escolha seria a mesma que a minha: nós preferiríamos Ahmed e sua corporação ao banditismo que vemos manifestar-se em outras partes do mundo, esteja ele dentro do quadro das leis ou fora delas. Mas nenhuma escolha nos é proposta e este mundo de ilusão deve ser aceito por nosso entendimento errôneo, não importa qual seja esse entendimento...”

Ao se despedir a Corporação confiou Raymond um sinal e uma senha, para que fosse usada discretamente, para se proteger num lugar como na praça de Djemaa-El-Fna.

Depois disso, o autor (Raymond) teve que retornar a Marráquexe, quando teve a oportunidade de novamente se encontrar com Ahmed. Porém desta vez seu amigo havia deixado a Corporação e se tornado enfermeiro de um hospital em Casablanca. E respondendo à pergunta de Raymond, Ahmed disse-lhe que mudou de vida porque o trabalho no hospital era mais rendoso.



Encontros com o insólito – clique aqui para ver

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